quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

METEMPSICOSE

                                                                              
by Manoel Gomes


As lembranças, às vezes, nos levam a lugares que não sabemos a priori se estivemos mesmo naquele lugar que elas nos levaram, ou se fomos nós mesmos os responsáveis por tal acontecimento. Pergunto-me se isso é possível.
De repente, fui levado por um sentimento de locomoção e meus pés me levaram para casa; do centro da cidade, onde eu estava sentado na cadeira de uma lanchonete comendo um sanduíche. Saí sem prestar à atenção nos transeuntes da movimentada São Paulo; minha visão embaçada procurava o horizonte, mas a poluição o cobria.
Desci pela Ladeira Porto Geral até o Parque Dom Pedro II; peguei o ônibus  Parque Dom Pedro II – Vila Nova Curuçá; o veículo desceu para a Zona Leste deslizava pela Avenida Celso Garcia; os carros que iam e vinham não faziam me livrar daquele sentimento de estar fora do corpo.
Sem conseguir esquecer a parada que eu desceria, toquei a campainha para o motorista parar e desci na Avenida São Miguel Paulista, antes duas paradas da Praça Padre Aleixo. Entrei em casa alheio aos meus primos, que estavam entretidos com a tevê.
Entrei no quarto peguei a minha mochila, coloquei algumas roupas e saí depressa para pegar um ônibus que me levasse até Mogi das Cruzes. Atravessei no farol em frente a quitanda do japonês e o ônibus já estava a chegar.
Com a mesma sensação de estar em estado de levitação desci para uma cidade que não conhecia, nem sabia por que eu estava indo para lá, nem ao encontro do quê.
Dormi até o Terminal Rodoviário de Mogi e acordei quando o cobrador gritou: “Ponto final!”. Desci para o lado direito e segui por uma estrada, obedeci as minhas lembranças, mas, estava indo para onde eu não conhecia.
O sol descia no Oeste, se aproximava uma noite fria e seca. Saí do perímetro urbano e entrei numa região de plantação de hortaliças. Os meus passos eram ritmados e atingia uma velocidade de um praticante de esporte. O claro dia ainda resistia ao escuro quando avistei ao fundo de uma clareira as ruínas de um sobrado.
Observei as construções rurais, me fascinava a rusticidade das casas; entrei num longo espaço sem plantação, não existia vida humana por perto, era o meu refúgio para aquela noite e me encaminhei para aquela casa levado pelo desejo de me proteger das sombras da noite.
A casa sofrera um incêndio em tempos idos e os restos da construção ainda estavam de forma que se podia ver uma escada para um primeiro pavimento e as divisões de uma casa que foi habitada por pessoas abastadas.
Na sala da casa abria-se uma grande área de estar. Imaginei pessoas dançando ao som do piano de calda; postado ao pé da escada sendo tocado pela debutante na comemoração da transição de uma idade, para uma vida cheia de alegrias e desejos.
Mas me ative noutro evento ao perceber que alguém já estivera ali antes, alguns restos de madeira queimada e papel; meu faro avisara que alguém acendeu um fogo ali, depois do incêndio, os restos eram recentes e um banco improvisado com tijolos ressequidos estava junto ao monte de cinzas.
“Esteve alguém aqui”. Pensei. “E não faz muito tempo”.
Eu não tinha como fazer fogo; um fósforo, um isqueiro, ou qualquer objeto de fricção par resolver meu problema de iluminação. A luz do sol se foi totalmente, eu não conseguia enxergar nada próximo de mim, a não ser o horizonte escuro.
Sentei no banco que alguém deixara e pensei porque eu chegara até ali, qual o motivo, minha cabeça começava a ficar zonza, não atinei no perigo iminente que eu sofria, não tinha nenhum sentimento humano resistente em mim.
De repente, ouvi o barulho de um motor de automóvel no ar, de onde vinha aquele carro? Os faróis iluminaram a estrada que ficava a cinqüenta metros daquele velho castelo. O carro vinha manso e constante, deixou a estrada, entrou para onde eu estava, percebi que vinham duas pessoas no carro, eram marido e mulher.
Quando percebi que o casal estava vindo na direção da casa, usei a velha escada e subi para o mezanino do primeiro andar, onde fiquei escondido atrás de uma parede ainda de pé.
O casal desceu do carro como se conhecesse o local, sabia por onde entrar e sair. Entraram pela sala e saíram pela porta que dava para os fundos da casa e foram para o jardim abandonado, mas, ainda se percebia margaridas e gerânios que resistiam os intempéries do esquecimento.
No jardim, ou naquele espaço que resistiam aquelas flores, o casal começou a cavar o solo. Do alto, eu não conseguia acreditar no que meus olhos viam, minhas pernas tremiam, meu corpo estava incontrolável. O casal parecia perceber a minha presença ali, mas continuava a procura de algo que ficava no subsolo daquele jardim.
Após uns dez minutos de escavação o casal encontrou um pequeno corpo e chorou ao colocá-lo nos braços.
O casal se abraçou novamente e chorando e repetiu.
“Minha filha você vai para onde devia estar”.
O casal pegou aquela criança que estava enrolado numa manta de lã amarela e foram para o carro que estava estacionado em frente a casa e foi-se embora.
Aturdido, com a cena que acabara de ver, eu não sabia o que fazer, não podia voltar para cidade, pois estava longe, sobrava para mim, apenas dormir naquele local esquecido pelos vivos e visitado pelos mortos.
Quando o carro sumiu na escuridão eu desci do pavimento superior e voltei a sentar no banco de tijolos deixados por alguém que esquentara o frio com o fogo improvisado.
Sentei-me por algum tempo, enquanto a noite cada vez mais escurecia. Organizei um espaço para acomodar meu corpo usando a minha mochila como travesseiro; por causa do cansaço de ter caminhado, aproximadamente, uns quinze quilômetros para fora do perímetro urbano, adormeci após uns cinco minutos.
Não vi a noite passar, acordei com o calor do sol no meu rosto aquecendo as pupilas dos meus olhos. Abri a visão no espaço e senti um pouco de medo do local e do que poderia ter acontecido comigo à noite.
Levantei-me com o corpo sofrendo as dores do desconforto e num espírito de sobrevivência estiquei os músculos e me preparei para sair daquele local. Observei o resto do fogo que estava intacto, o fogo apagara e não fora mexido, percebi que o acendedor do fogo não se utilizou só de restos de madeira, ele usara também um jornal velho que teimou em não queimar por completo.
Peguei o que sobrou do jornal e abri em uma página quase completa, e o que sobrou de uma matéria me chamou à atenção. “Pais tentam salvar filha do incêndio e morrem sufocados pela fumaça”.
A matéria não dizia mais do que estava resumido na manchete. Mas aquele acidente estava estranho, o fogo tinha começado na parte superior do prédio, no quarto do casal, segundo o relatório da perícia.
Se o casal tentara salvar sua filha, o fogo só poderia ter começado no quarto da criança, mas não era isso que estava descrito no texto.
O texto dizia que o fogo começou no quarto do casal; isso me deixou intrigado, eu sabia que algo estava errado.
Despertei da minha intriga pelo barulho do mesmo motor que eu ouvira na noite anterior, mas, não entendi por que o veículo pararia na frente da casa novamente, corri para a estrada. O motorista percebeu que eu queria falar algo e parou junto a mim, perguntou se eu queria carona. Eu Não sabia para onde a carona me levaria, nem mesmo tinha idéia para onde ir. Aceitei a carona e entrei no banco da frente, num Maverick 74, que estava muito conservado, mas cheirava poeira. O motorista me olhou no olho com persuasão, como que pedindo socorro.
O carro acelerou numa velocidade constante de sessenta quilômetros por hora; o motorista olhou para mim e perguntou se eu tinha visto alguma coisa estranha na casa durante a noite.
“Não?” Respondi.
“Mas, nada mesmo?”
“Nada”. Confirmei.
Na nossa frente, em direção contrária a que íamos uma carreta carregada com frutas apontou em alta velocidade, a estrada vicinal não era suficientemente larga para aquela extravagância do motorista, fiquei medroso quando percebi que poderia acontecer um acidente. Os dois carros não davam passagem um para o outro.
Os motoristas e os carros continuavam teimosos num espaço que os dois não cabiam. O caminhão ia acertar o velho Ford quando o motorista manobrou forte para a direita, o capotamento suplicou por duas vezes. Um mal estar tomou meu corpo quando o carro parou com o teto no chão.
Procurei o motorista do meu lado e não o encontrei, o motorista tinha sumido, saí ferido, mas caminhei até a estrada, não vi nada que lembrasse um acidente de trânsito, nenhuma marca de pneu; o carro que tinha me levado até ali, tinha sumido.
Como eu fora parar ali? No meio do nada, quem me levou ali? Como fui parar num lugar que não me lembrava! Parecia que tudo no mundo conspirava para minha inautenticidade, a minha consciência estava descarregada noutro processo de eleição de minha percepção.
Eu fiquei no meio da estrada aturdido, quando de repente um carro me acertou de frente enquanto eu estava na leviandade do meu pensamento. Saí da vida logo que fui atingido pela alta-velocidade do veículo.
Enquanto acontecia a transmigração de minha alma para o meu corpo, o meu transcendente foi avisado do acidente com a família Motta de Andrade.
Sofia, filha única do casal Motta de Andrade estava no seu quarto e ouviu o som do piano que vinha da sala, despertou-a e caminhou para estar com o seu pai que dedilhava Chopin em redondilha maior.
A criança de quatro anos pisou em falso na descida da escada e caiu sobre sua cabeça. Os pais tentaram inconformados reanimar Sofia, tentativa inútil, não conseguiram. Tentado a não comunicar o fato à polícia nem a família o casal levou o corpo de Sofia para o jardim e o enterrou entre margaridas e gerânios. Foi para o quarto e ateou fogo e morreu abraçado.
A perícia não encontrara o corpo da criança nem o jornal citou o fato. Acordei num hospital da capital depois de três dias, após ser atingido por um carro na Rua Líbero Badaró. Contei para a enfermeira essa história. A existência do prédio na estrada entre Mogi da Cruzes e Salesópolis, onde poderia no jardim da casa queimada estar enterrado o corpo de uma criança, Sofia, a filha do casal que morrera naquela casa.
A polícia foi informada do meu sonho e providenciou a exumação na área do jardim; encontrou o corpo depois de escavar no lugar indicado, por mim. Um enterro digno de anjo foi feito para Sofia, que não entendeu porque a sua existência não chegou a atingir mais que quatro anos.
                                                                                                                                             ano de 2005


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