sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

OS MELHORES POEMAS BRASILEIROS


UMA VISÃO CRÍTICA

by Manoel Gomes, Professor de Sociologia


A produção poética brasileira começou no século XVII com a poesia do padre José de Anchieta. O jesuíta escreveu duas vertentes poéticas: a poesia didática, e a poesia que reflete uma visão teocêntrica de mundo. Com característica da lírica medieval portuguesa e a simplicidade de transmitir a fé. Os poemas mais representativos do barroco brasileiro são de Gregório de Matos, onde o jogo de palavras resulta na fusão do material e espiritual. O poeta abusa da metáfora, da antítese e do trocadilho. Os “Sermões” do padre Antonio Vieira completam a fase barroca o que se empenharam pela liberdade dos índios.
As “Liras” de Cláudio Manoel da Costa iniciam o Arcadismo, expressam sentimentos comuns e universais, interpretam a realidade de maneira objetiva. “Uruguai” de Basílio da Gama narra as lutas entre índios de Sete Povos das Missões na região sul do país. “Caramuru” de Santa Rita Durão trata do descobrimento da Bahia. “Marília de Dirceu” de Tomás Antonio Gonzaga transforma o eu-lírico em pastor, com confidências amorosas, descrições da amada; planos e sonhos de felicidade conjugal.
Suspiros poéticos e saudades”  de Gonçalves de Magalhães iniciam o movimento romântico. “Canção do tamoio” de Gonçalves Dias faz uma exortação, um conselho que um velho índio dar a seu filho recém-nascido; “Canção do exílio” registra a sensação de estar longe da terra natal; “I-Juca pirama” expressa costumes e crenças das tribos indígenas brasileiras. “Idéias Íntimas” de Álvares de Azevedo abusa de adjetivos, interjeições, exclamações e reticências; “Lembranças de morrer” foi escrito um mês antes da morte do autor, o texto manifesta o pessimismo típico da geração Ultra-romântica. “Morte (hora de delírio)” de Junqueira Freire mostra-se dividido entre os apelos da vida material e carnal, entre o amor a Deus e à mulher; entre o amor platônico e o amor sensual, entre a vida e a morte.

Cântico do calvário” de Fagundes Varela é dedicado a seu filho, Emiliano, que morreu aos três meses de idade. É recheado de metáforas e as figuras de linguagens expressam emoções. “Segredos” de Casimiro de Abreu apresenta forte musicalidade. “Meus oito anos” apresenta característica do mal-do-século; o saudosismo revela a melancolia produzida pela saudade da infância. “O navio negreiro” e “Vozes d’África” são as principais realizações poéticas de Castro Alves. “O navio negreiro” denuncia o sofrimento dos negros transportados da África para o Brasil, para trabalhar como escravos. “Guesa errante” de Joaquim Sousândrade registra um encontro amoroso entre o índio e seu primeiro amor.
O parnasiano “Sonho” de Olavo Bilac contrapõe o presente “hoje”, no qual se leva uma vida “sem glória”, “apagada” e “merencória”, ao passado histórico no qual supostamente a vida era melhor; “Profissão de fé” alheia-se do mundo preocupando-se apenas com sua tarefa de criar beleza através da palavra. Está centrado na comparação lógica entre o trabalho do ourives e o trabalho do poeta. “O Vaso chinês” de Alberto de Oliveira distancia-se dos temas relacionados à realidade dos parnasianos que criavam a “arte pela arte”. “As pombas” de Raimundo Correia estabelece comparação entre a cena descrita e a perda das ilusões dos sonhos, compara o movimento das pombas aos sonhos da adolescência que igualmente voam.
O poema simbolista finaliza um período de formas definidas. “Violões que choram” de Cruz e Sousa é o mais representativo do simbolismo brasileiro, o longo texto tece metáforas e antíteses; “Cavador do Infinito” utiliza-se da filosofia para questionar a razão e o fundamento da existência humana. “Ismália” de Alphonsus de Guimaraens retrata o desejo contraditório de Ismália, construído sob antítese, é interpretado nos seus últimos versos numa concepção cristã de Universo. “Psicologia de um vencido” de Augusto dos Anjos deprecia o eu-lírico e procura sensibilizar o leitor através do feio e do horroroso. “Versos Íntimos” inova com um tom coloquial e cotidiano. Estabelece com um possível interlocutor, advertindo-o da ingratidão e induzindo-o a não aceitar qualquer gesto de solidariedade, aconselha-o a antecipar a agressividade. Expõe uma concepção determinista de sociedade, em que vencem os mais fortes; daí a necessidade de ser fera.
O poema modernista marca o fim da formalidade, dos sonetos medidos e das rimas. “Ode ao burguês” de Mário de Andrade faz referência ao traje do “Arlequim”, metaforiza a diversidade, o imprevisto, oposição a previsibilidade do burguês. “Erro de português” de Osvald de Andrade sintetiza a linguagem da carta escrita por Pero Vaz de Caminha, utiliza-se da expressão formada a partir dos termos coloquiais. “Vou-me embora pra Pasárgada” de Manoel Bandeira representa os anseios do autor de se salvar da doença que contraiu na adolescência. “Ultimo poema” insere dois temas centrais: a valorização da simplicidade e a consciência da morte com o máximo de intensidade vital; “Letra para uma valsa romântica” o eu-poético confessa seu sentimento pela musa Elisa e idealiza a mulher como se estivesse num pedestal. “Reis magos” de Cassiano Ricardo traz à luz uma visão metafórica da formação do povo brasileiro, a partir da identidade entre a figura de Cristo e o novo país descoberto.

Filiação” de Murilo Mendes o eu-poético declara-se católico e aceita a concepção de mundo em que Deus é o Criador. “Essa negra fulô” de Jorge de Lima apresenta característica narrativa com gradações em dois momentos, que preparam para o clímax. O eu-poético faz um jogo lingüístico com as formas dos pronomes; “Poema do Cristão” aponta na religião a solução para uma realidade injusta, conturbada e excessivamente materialista. “Inscrição na areia” de Cecília Meireles trata do pouco valor que o poeta atribui ao seu próprio sentimento, não se preocupa apenas com o significado da mensagem, mas, sobretudo com a construção da mesma; “Feitiçaria” utiliza-se da impessoalidade do verbo e a inexistência do sujeito como recurso lingüístico para dar a idéia de um mundo parado, em que as pessoas poderiam ter vidas, mas não têm. “No meio do caminho” de Carlos Drummond de Andrade é considerado o poema mais representativo do modernismo brasileiro, provocou escândalo à época, o verso “tinha uma pedra no meio do caminho” emprega o verbo ter como impessoal, papel que não lhe é comum no padrão culto da língua, o que seria, “havia uma pedra no meio do caminho”; “A hora do cangaço” emprega a dualidade do eu-lírico para o envolver na eternidade das coisas que em um determinado momento, deixam de parecer eternas; “José” toma consciência do tenso momento histórico e produz a indagação filosófica sobre o sentido da vida, e, indaga com José sem sobrenome, sem origem definida, que se perdeu tudo.

Confidência do itabirano” em tom afetuoso reinterpreta o passado vivido na terra natal; “Amar” procura capturar a essência desse sentimento, o texto revela antagonismos entre o definitivo e o passageiro, o prazer e a dor. O “Soneto da felicidade” de Vinícius de Morais desdobra-se em propostas de comportamentos, todas em função do seu amor e dar explicações por que se dispõe a ser fiel, tem como característica o ritmo e a sonoridade; “Soneto do amor total” constrói-se em duas facetas: o amor espiritual e amor físico e não vê limites entre os dois amores, confessa amor independente de alteração do mundo exterior; “Soneto da separação” o eu-lírico vive um conflito enfatizado pela antítese.
“Morte e vida Severina” de João Cabral de Melo Neto é um poema épico da vida do retirante nordestino. Os personagens trocam paralelos com a paisagem da terra sofrida do sertão nordestino. A trajetória do Severino que foge da seca, passa pelos latifúndios canavieiros e acaba nos barracos miseráveis da cidade litorânea; “Lua nova” remete ao tempo que o poeta transferiu-se, num mesmo prédio, de um apartamento de fundos para outro cuja frente dava para a Baía de Guanabara. O fato em si seria irrelevante para a poesia, não fossem as imagens que o poeta criou. “Pequena crônica policial” de Mário Quintana é composta no gênero narrativo, mas numa expressão poética peculiar ao seu estilo; “Poema de circunstâncias” é estruturado em torno da personificação da figura dos olhos, o eu-lírico confessa que, do lugar onde se acha ainda resta a possibilidade de observar as coisas.
A produção poética brasileira ultrapassa os quatrocentos anos. Desde a publicação da malfadada Prosopopéia de Bento Teixeira em 1601, até os moderníssimos “Mãe”, de J. G. de Araújo Jorge; “O Alto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, “Apelo” de Eno Theodoro Wanke, que mereceu 160 versões para 95 idiomas e a “poesia completa”, de Ledo Ivo. Salva-nos a sobriedade dos poemas ledivanos.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

DEMOCRACIA E CAPITALISMO


Manoel Gomes, Professor de Sociologia



Se começássemos a dizer claramente que a democracia é uma piada, um engano, uma fachada, uma falácia e uma mentira, talvez pudéssemos nos entender melhor.

José Saramago, escritor português.



Estamos diante de duas doutrinas responsáveis pelo avanço rápido e extravagante da mundialização, ou visto pelo conceito mais atual, a globalização. Essas duas doutrinas provocam muita confusão no pensamento do homem moderno, principalmente, naqueles com baixo grau de instrução. Democracia vem de origem grega: _ “governo do povo, pelo povo e para o povo”. E “todo o poder emana do povo”. O capitalismo acredita-se que ele tenha nascido com o advento do mercantilismo. Mas é um conceito do novíssimo dicionário do século XIX, principalmente, das idéias revolucionárias do filósofo alemão Karl Marx, que sempre o combateu com pensamento de igualdade social.

A Democracia defendida pelos gregos é um sistema político de decisão popular, onde busca hegemonia popular, mas não prega a igualdade social, pois na Grécia Antiga, na sua hierarquia de comando o povo em sua maioria não tinha voz na decisão final para formação do governo.

A doutrina do capitalismo é categórica, para ela existir o elemento a ser explorado é mão-de-obra humana. Marx desenvolveu teorias de composição para conduzir, homem e capital num nível de igualdade, mas não conseguiu ir além da explicação da relação empregado versus, empregador, com a mais valia. Mas não desenvolveu a tese de como pudesse ser empregada uma evolução condescendente com o empregado nesse sistema de relação democrático-capitalista.

Na democracia o homem fica livre para decidir seus compromissos, e esse, ele só cumpre quando lhe interessa, isto é, por satisfação pessoal, ou para auferir benefícios. A teoria de que todos têm direitos e deveres iguais e que são iguais num país democrático e capitalista, no mundo moderno, está no discurso do opressor. Por que e como podemos ver essas duas doutrinas que dão liberdade ao povo. E logo a liberdade que torna a igualdade impossível.

No mundo contemporâneo, esse entendimento é valido para aquele que tem o discernimento das suas capacidades, aquele que desenvolve, cria e habilita produtos. Este é por natureza um conquistador de interesses, também é um daqueles que adquirem direitos e quando adquirem direitos, seus deveres são adquiridos na mesma proporção, mas como a teoria democrática, os deveres ele cumpre, mas, só àqueles que, por ventura venham lhe atrapalhar, os que são favoráveis a outrem, ele ignora.
Nesse mundo novo, quem não tem a capacidade de discernimento; com certeza não vai adquirir muito na vida; este sofrerá o estigma de que é um para nada. O homem não produtor é produto, manipulado pela sociedade, pela situação da natureza e pela política. O homem com o conceito de sem futuro entra naquele grupo conceituado pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht, o analfabeto político. As teorias são analisáveis e discutidas, mas as conseqüências do comportamento de um homem acomodado com a situação estabelecida pelo sistema democrático-capitalista do mundo atual são discutíveis.

COMPORTAMENTO E CRIMINALIDADE


Manoel Gomes, professor de Sociologia
 

Alguns teóricos acreditam no fundamento que a estatística é a ciência base para medir o comportamento do ser humano, principalmente, quando abordam o objeto, criminalidade. Apresentam exemplos de crescimento da densidade demográfica para provar suas teorias. Tomando como base para o estudo de reincidência à criminalidade, o período de dez anos, como um espaço favorável para se medir qualquer comportamento, nos campos sociais, criminais e de reincidências, por parte de egressos do Sistema Penitenciário, vamos comprovar que a estatística é uma ciência de dados ponderados. Segundo dados estatísticos atualizados sobre a violência no Distrito Federal, a criminalidade cresceu proporcionalmente ao crescimento da população. Em 1994 a população do Distrito Federal era constituída de aproximadamente, (um milhão e quinhentos mil habitantes); a população carcerária era de, aproximadamente, (dois mil e quatrocentos) presos. Na atual administração a população brasiliense é de aproximadamente (dois milhões e duzentos mil habitantes) e a população carcerária de aproximadamente (sete mil) presos.

Se analisarmos estatisticamente é verdadeiro o crescimento proporcional da criminalidade com o da população. O crescimento da violência acompanhou o crescimento da população em geral. Usando a média ponderada em 1994, era 0,16% de presos no Distrito Federal. Nos dias atuais é de 0,36%. Portanto, o crescimento da violência foi maior, mesmo que o aumento da população tenha sido assustadora, e ajustada a desorganização da administração pública. Mas quem disse que se mede criminalidade por dados estatísticos? É verdade que o crescimento do número de crimes, proporcionalmente, foi igual, em termos populacionais ao do ano de 1994. A criminalidade se mede pelo comportamento dos indivíduos envolvidos na rede do crime. Não podemos acreditar na teoria de que para cada 1000 indivíduos, quatro tenham que ser criminosos. Não é possível medir o comportamento individual pela estatística, por essa média, fica instituído que o homem tem que cometer crimes mesmo que não queira. Essa medida só é possível através das ciências sociais e do comportamento.

A criminalidade no Distrito Federal aumentou e vem aumentando virtiginosamente. De 1994 para 2004 teve um aumento no número de indivíduos presos de aproximadamente, 300%. Esse número é constituído de uma reincidência de 85% dos egressos do Sistema Carcerário. Esse aumento não é hodierno pelo aumento da população brasiliense, é por falta de políticas educacionais e de promoção de emprego e renda que não existem por parte do governo do Distrito Federal. Independentemente, da população pequena, ou grande, quando os componentes dela, não têm o que fazer. Fazem o que encontram com facilidade, a ilicitude. O discurso de que os presos vivem da criminalidade é do opressor. O preso vive do crime porque a reincidência é latente no egresso. Ele está às vistas do preconceito, em primeiro lugar, depois as oportunidades a ele são exíguas.

Mais de 85% dos egressos do sistema penitenciário do Distrito Federal reincidem, para um leigo, essa proporcionalidade é cabal; os presos vivem mesmo da criminalidade. Mas vamos conceituar como comportamento, ou como um objeto delimitado pela criminologia. Esta ciência é um ramo dissidente da ciência do Direito, partindo desse estudo, iremos perceber que o criminoso não estuda os seus atos.

Mesmo que os grupos de criminosos ou àqueles que agem separadamente, organizassem suas ações estrategicamente, este estudo é de estratégia e de campo, e, não um estudo do resultado de suas ações. Os resultados que interessam aos criminosos não são interessantes para o estudo aqui focado, mas o que ele leva de montante em dinheiro ou objetos. Podemos encontrar, sim, aqueles que vivem da criminalidade, e para isso temos que procurar nos gabinetes dos juízes, dos promotores, dos delegados de polícia e agente, este último divide-se em agentes investigadores e agentes penitenciários. Estes são organizações instituídas pelo Estado para viverem da criminalidade, alguns estudando, outros usam do cargo a seu bel prazer, sem deixar resultado, nem mudança, além desses têm: os antropólogos, os sociólogos e os psico-pedagogos que entram nesse mundo da criminologia para fazer estudos de comportamento, vivência e comunicação.

Esses são os homens de bem que vivem da criminalidade. São pessoas que vivem distribuindo seus conceitos sobre quais crimes são justos ou injustos, quais criminosos são recuperáveis ou não, provocando conflitos entre a sociedade e os indivíduos procedentes dela e que ferem as normas por ela imposta. O Ministério Público, segundo seu estatuto é o órgão responsável pela fiscalização da lei, tanto na sua aplicação, quanto na sua execução, mas seus componentes, que são promotores e procuradores estão na onda contrária. O órgão não fiscaliza mais, além disso, tomou posse das investigações, das condenações e estar atrapalhando a execução das penas.

Com tal atitude os promotores constrangem juízes, conselheiros e quaisquer outros que estejam envolvidos na inconveniência da ilicitude das normas jurídicas. Na atual conjuntura os juízes estão sendo manipuladas pelos promotores, suas decisões estão atreladas às vontades dos fiscais da lei, que se organizam para deixar todas as pessoas ás suas convicções. Os juízes não podem se mexer, os donos do poder judiciário são promotores quem detêm o poder, ou seja, o status de quarto poder, o que os deixam livres para ações ou omissões.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

METEMPSICOSE

                                                                              
by Manoel Gomes


As lembranças, às vezes, nos levam a lugares que não sabemos a priori se estivemos mesmo naquele lugar que elas nos levaram, ou se fomos nós mesmos os responsáveis por tal acontecimento. Pergunto-me se isso é possível.
De repente, fui levado por um sentimento de locomoção e meus pés me levaram para casa; do centro da cidade, onde eu estava sentado na cadeira de uma lanchonete comendo um sanduíche. Saí sem prestar à atenção nos transeuntes da movimentada São Paulo; minha visão embaçada procurava o horizonte, mas a poluição o cobria.
Desci pela Ladeira Porto Geral até o Parque Dom Pedro II; peguei o ônibus  Parque Dom Pedro II – Vila Nova Curuçá; o veículo desceu para a Zona Leste deslizava pela Avenida Celso Garcia; os carros que iam e vinham não faziam me livrar daquele sentimento de estar fora do corpo.
Sem conseguir esquecer a parada que eu desceria, toquei a campainha para o motorista parar e desci na Avenida São Miguel Paulista, antes duas paradas da Praça Padre Aleixo. Entrei em casa alheio aos meus primos, que estavam entretidos com a tevê.
Entrei no quarto peguei a minha mochila, coloquei algumas roupas e saí depressa para pegar um ônibus que me levasse até Mogi das Cruzes. Atravessei no farol em frente a quitanda do japonês e o ônibus já estava a chegar.
Com a mesma sensação de estar em estado de levitação desci para uma cidade que não conhecia, nem sabia por que eu estava indo para lá, nem ao encontro do quê.
Dormi até o Terminal Rodoviário de Mogi e acordei quando o cobrador gritou: “Ponto final!”. Desci para o lado direito e segui por uma estrada, obedeci as minhas lembranças, mas, estava indo para onde eu não conhecia.
O sol descia no Oeste, se aproximava uma noite fria e seca. Saí do perímetro urbano e entrei numa região de plantação de hortaliças. Os meus passos eram ritmados e atingia uma velocidade de um praticante de esporte. O claro dia ainda resistia ao escuro quando avistei ao fundo de uma clareira as ruínas de um sobrado.
Observei as construções rurais, me fascinava a rusticidade das casas; entrei num longo espaço sem plantação, não existia vida humana por perto, era o meu refúgio para aquela noite e me encaminhei para aquela casa levado pelo desejo de me proteger das sombras da noite.
A casa sofrera um incêndio em tempos idos e os restos da construção ainda estavam de forma que se podia ver uma escada para um primeiro pavimento e as divisões de uma casa que foi habitada por pessoas abastadas.
Na sala da casa abria-se uma grande área de estar. Imaginei pessoas dançando ao som do piano de calda; postado ao pé da escada sendo tocado pela debutante na comemoração da transição de uma idade, para uma vida cheia de alegrias e desejos.
Mas me ative noutro evento ao perceber que alguém já estivera ali antes, alguns restos de madeira queimada e papel; meu faro avisara que alguém acendeu um fogo ali, depois do incêndio, os restos eram recentes e um banco improvisado com tijolos ressequidos estava junto ao monte de cinzas.
“Esteve alguém aqui”. Pensei. “E não faz muito tempo”.
Eu não tinha como fazer fogo; um fósforo, um isqueiro, ou qualquer objeto de fricção par resolver meu problema de iluminação. A luz do sol se foi totalmente, eu não conseguia enxergar nada próximo de mim, a não ser o horizonte escuro.
Sentei no banco que alguém deixara e pensei porque eu chegara até ali, qual o motivo, minha cabeça começava a ficar zonza, não atinei no perigo iminente que eu sofria, não tinha nenhum sentimento humano resistente em mim.
De repente, ouvi o barulho de um motor de automóvel no ar, de onde vinha aquele carro? Os faróis iluminaram a estrada que ficava a cinqüenta metros daquele velho castelo. O carro vinha manso e constante, deixou a estrada, entrou para onde eu estava, percebi que vinham duas pessoas no carro, eram marido e mulher.
Quando percebi que o casal estava vindo na direção da casa, usei a velha escada e subi para o mezanino do primeiro andar, onde fiquei escondido atrás de uma parede ainda de pé.
O casal desceu do carro como se conhecesse o local, sabia por onde entrar e sair. Entraram pela sala e saíram pela porta que dava para os fundos da casa e foram para o jardim abandonado, mas, ainda se percebia margaridas e gerânios que resistiam os intempéries do esquecimento.
No jardim, ou naquele espaço que resistiam aquelas flores, o casal começou a cavar o solo. Do alto, eu não conseguia acreditar no que meus olhos viam, minhas pernas tremiam, meu corpo estava incontrolável. O casal parecia perceber a minha presença ali, mas continuava a procura de algo que ficava no subsolo daquele jardim.
Após uns dez minutos de escavação o casal encontrou um pequeno corpo e chorou ao colocá-lo nos braços.
O casal se abraçou novamente e chorando e repetiu.
“Minha filha você vai para onde devia estar”.
O casal pegou aquela criança que estava enrolado numa manta de lã amarela e foram para o carro que estava estacionado em frente a casa e foi-se embora.
Aturdido, com a cena que acabara de ver, eu não sabia o que fazer, não podia voltar para cidade, pois estava longe, sobrava para mim, apenas dormir naquele local esquecido pelos vivos e visitado pelos mortos.
Quando o carro sumiu na escuridão eu desci do pavimento superior e voltei a sentar no banco de tijolos deixados por alguém que esquentara o frio com o fogo improvisado.
Sentei-me por algum tempo, enquanto a noite cada vez mais escurecia. Organizei um espaço para acomodar meu corpo usando a minha mochila como travesseiro; por causa do cansaço de ter caminhado, aproximadamente, uns quinze quilômetros para fora do perímetro urbano, adormeci após uns cinco minutos.
Não vi a noite passar, acordei com o calor do sol no meu rosto aquecendo as pupilas dos meus olhos. Abri a visão no espaço e senti um pouco de medo do local e do que poderia ter acontecido comigo à noite.
Levantei-me com o corpo sofrendo as dores do desconforto e num espírito de sobrevivência estiquei os músculos e me preparei para sair daquele local. Observei o resto do fogo que estava intacto, o fogo apagara e não fora mexido, percebi que o acendedor do fogo não se utilizou só de restos de madeira, ele usara também um jornal velho que teimou em não queimar por completo.
Peguei o que sobrou do jornal e abri em uma página quase completa, e o que sobrou de uma matéria me chamou à atenção. “Pais tentam salvar filha do incêndio e morrem sufocados pela fumaça”.
A matéria não dizia mais do que estava resumido na manchete. Mas aquele acidente estava estranho, o fogo tinha começado na parte superior do prédio, no quarto do casal, segundo o relatório da perícia.
Se o casal tentara salvar sua filha, o fogo só poderia ter começado no quarto da criança, mas não era isso que estava descrito no texto.
O texto dizia que o fogo começou no quarto do casal; isso me deixou intrigado, eu sabia que algo estava errado.
Despertei da minha intriga pelo barulho do mesmo motor que eu ouvira na noite anterior, mas, não entendi por que o veículo pararia na frente da casa novamente, corri para a estrada. O motorista percebeu que eu queria falar algo e parou junto a mim, perguntou se eu queria carona. Eu Não sabia para onde a carona me levaria, nem mesmo tinha idéia para onde ir. Aceitei a carona e entrei no banco da frente, num Maverick 74, que estava muito conservado, mas cheirava poeira. O motorista me olhou no olho com persuasão, como que pedindo socorro.
O carro acelerou numa velocidade constante de sessenta quilômetros por hora; o motorista olhou para mim e perguntou se eu tinha visto alguma coisa estranha na casa durante a noite.
“Não?” Respondi.
“Mas, nada mesmo?”
“Nada”. Confirmei.
Na nossa frente, em direção contrária a que íamos uma carreta carregada com frutas apontou em alta velocidade, a estrada vicinal não era suficientemente larga para aquela extravagância do motorista, fiquei medroso quando percebi que poderia acontecer um acidente. Os dois carros não davam passagem um para o outro.
Os motoristas e os carros continuavam teimosos num espaço que os dois não cabiam. O caminhão ia acertar o velho Ford quando o motorista manobrou forte para a direita, o capotamento suplicou por duas vezes. Um mal estar tomou meu corpo quando o carro parou com o teto no chão.
Procurei o motorista do meu lado e não o encontrei, o motorista tinha sumido, saí ferido, mas caminhei até a estrada, não vi nada que lembrasse um acidente de trânsito, nenhuma marca de pneu; o carro que tinha me levado até ali, tinha sumido.
Como eu fora parar ali? No meio do nada, quem me levou ali? Como fui parar num lugar que não me lembrava! Parecia que tudo no mundo conspirava para minha inautenticidade, a minha consciência estava descarregada noutro processo de eleição de minha percepção.
Eu fiquei no meio da estrada aturdido, quando de repente um carro me acertou de frente enquanto eu estava na leviandade do meu pensamento. Saí da vida logo que fui atingido pela alta-velocidade do veículo.
Enquanto acontecia a transmigração de minha alma para o meu corpo, o meu transcendente foi avisado do acidente com a família Motta de Andrade.
Sofia, filha única do casal Motta de Andrade estava no seu quarto e ouviu o som do piano que vinha da sala, despertou-a e caminhou para estar com o seu pai que dedilhava Chopin em redondilha maior.
A criança de quatro anos pisou em falso na descida da escada e caiu sobre sua cabeça. Os pais tentaram inconformados reanimar Sofia, tentativa inútil, não conseguiram. Tentado a não comunicar o fato à polícia nem a família o casal levou o corpo de Sofia para o jardim e o enterrou entre margaridas e gerânios. Foi para o quarto e ateou fogo e morreu abraçado.
A perícia não encontrara o corpo da criança nem o jornal citou o fato. Acordei num hospital da capital depois de três dias, após ser atingido por um carro na Rua Líbero Badaró. Contei para a enfermeira essa história. A existência do prédio na estrada entre Mogi da Cruzes e Salesópolis, onde poderia no jardim da casa queimada estar enterrado o corpo de uma criança, Sofia, a filha do casal que morrera naquela casa.
A polícia foi informada do meu sonho e providenciou a exumação na área do jardim; encontrou o corpo depois de escavar no lugar indicado, por mim. Um enterro digno de anjo foi feito para Sofia, que não entendeu porque a sua existência não chegou a atingir mais que quatro anos.
                                                                                                                                             ano de 2005


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Violência urbana, mal de raiz profunda

Manoel Gomes


Não há vício de que um homem pode ser culpado, nenhuma baixeza, nenhuma indelicadeza que excita tanta indignação entre seus contemporâneos, amigos e vizinhos, como o seu sucesso. Este é o crime, imperdoável, que a razão não pode defender, nem a humildade mitigar. The Times

O fenômeno da mundialização iniciado pelos conquistadores desde o despertar da civilização e interpretado de forma mais profunda no século XXI como globalização é o processo que vem transformando as relações humanas, produzindo uma nova visão de mundo, principalmente, no que diz respeito à violência, em particular a violência urbana. A etimologia da palavra violência vem do latim vis que se caracteriza pelo emprego da força bruta. Essa violência que corre e ricocheteia sobre todas as superfícies de nossa existência e que uma palavra, um gesto, uma imagem, um grito, uma sombra que seja, capta, sustenta e relança indefinidamente, e que, no entanto, desta espuma dos dias abre à alma vertiginosos abismos em mergulhos de angústia. A noção de violência conserva, mais que a extensão da pele, o ódio, amor e angústia. Não há uma palavra, um gesto, objeto ou instante que não encubra às vezes imperceptivelmente um grão de violência. (Dadoun, 1993).

A violência não é apenas um instrumento eficaz de interação: amiúde é pura e simplesmente percebida como um flagelo social que precisa ter remédio. Há boas razões para ser sensível à generalização do emprego da violência como meio cômodo de conseguir seus objetivos, mas não devemos ignorar o fato de que as sociedades contemporâneas desenvolvidas não param de elaborar mecanismos de controle dos desafios que encontram no combate a violência. Na maioria dos países desenvolvidos, a insegurança é um fenômeno urbano. Em 1975, por exemplo, nos Estados Unidos, 25% dos 20 000 homicídios nacionais ocorreram em apenas 10 cidades. Sabe-se também quais são os bairros de alto risco e que tanto os criminosos quanto às vítimas são pessoas de baixa renda. A violência se dá essencialmente em subculturas pobres onde os próprios indivíduos receberam uma educação violenta de pais violentos. Na medida em que as socializações para a violência numa família violenta e os valores machistas são fatores importantes de agressão, é indispensável uma política de educação e de auxílio à infância, - em particular para as crianças espancadas e vítimas de servícias por parte dos pais, (MICHAUD 1989, p. 62).

A violência urbana não é um evento novo, na sua classificação inclui atitudes violentas típicas do contexto citadino, ou casos que o imaginário circunscreve aos espaços urbanos. Essa é uma das categorias mais usada, porque inclui a narrativa dos mais variados acontecimentos, tais como: assassinatos, seqüestros, atropelamentos, crimes passionais, agressões, brigas, todos os tipos de assalto, fatos ligados às prisões e as ações governamentais, entre as quais se destacam as da segurança pública. Daí se pode provar que ela apenas está mais presente, principalmente, por causa do exagerado crescimento das cidades. E um dos fatores que concorre para isso é a falta de expressão cultural da população rural, que evade para a cidade a procura de cultura, ingrediente importante para o crescimento social. Mas, uma vez na cidade, o homem se decepciona com a falta do oferecimento desse benefício.

O êxodo rural conduz a uma série de outras implicações sociais, culturais e principalmente, o da violência. Os migrantes são desenraizados do seu contexto sócio-cultural e projetados para ambientes muitas vezes hostis e carentes nas periferias das cidades. Enquanto as conseqüências culturais se manifestam a médio e longo prazo, os impactos sociais aparecem imediatamente. Aí surge nas cidades brasileiras, a figura do excluído que “vive em situações desfavoráveis de miséria”. (VÉRAS, 1995, p. 15).

Em decorrência disso, não há como evitar os focos de pobreza e miséria, e ainda desemprego e a marginalização de jovens e velhos. Há quem considere que pobreza não seja motivo para os homens cometerem ou se envolverem em crimes. Há de se concordar com a rejeição de alguns estudiosos sociais e do comportamento que não é a pobreza que determina o caráter violento do homem.

Mas em circunstâncias urbanas quem determina a conduta dos homens são fatores que precisam de estudos mais profundos, e, um desses fatores e produto dessas ações desviantes é o econômico. A população urbana no Brasil atinge, aproximadamente 76% nos dias atuais.

O cotidiano na cidade tornou-se inseguro e violento, sobretudo nas grandes metrópoles. Os sinais são os muros que estão cada vez mais altos, o crescimento do número de guardas particulares e de esquemas de segurança cada vez mais sofisticados. A vida em condomínios fechados é uma alternativa para a parcela bem aquinhoada da população; o restante vive fora dos muros, sujeito a mazelas da vida real. O aumento da violência urbana mudou o estilo de vida, valorizando os “locais protegidos”, que favoreceu ainda mais os desequilíbrios sociais já existentes.

Com todos estes artifícios de segurança a liberdade de circular dos indivíduos diminuiu. As pessoas não são livres para sair a qualquer hora do dia ou da noite, ou ir a qualquer lugar sem preocupação. As crianças não podem brincar nas ruas porque muitos bairros são as gangues que tomam conta e ditam as regras de comportamento. São novas regras que regulam o uso do espaço. Esta situação é fomentada pelas desigualdades existentes entre a elite e o povo, pela permanência das formas injustas de exploração da mão-de-obra e pela ausência de regulação do poder público caracterizado por um elevado grau de impunidade.

O homem urbano é refém do consumismo selvagem, escamoteia sua vida, isto é, vive fora da realidade de suas condições econômicas. O emprego da violência como forma de solucionar os conflitos envolvidos nas relações de gênero, bem como em outras modalidades de relacionamentos interpessoais não sabemos, se de fato, é mais freqüente ou se tornou mais visível.

Conquanto a relação entre o crescimento da violência interpessoal e a instabilidade econômica das nações é bastante clara, seu emprego para solucionar os problemas sempre presentes nas relações humanas está diretamente ligado a certos hábitos culturais e políticos, tais como a estereotipagem das diferenças de classe, de gênero ou de raça e o exercício desigual do poder e da cidadania.

Levando em conta que cabe às ciências sociais se pronunciarem a respeito desses hábitos culturais e políticos, o crescimento ou a maior visibilidade da violência “urbana” coloca novos desafios para essas ciências, demandando uma reflexão distanciada do senso comum, ou como afirma Roberto da Matta, menos moralista e escandalosa, uma perspectiva que permita idealizar estratégias e sugerir alternativas mais realistas. (SUARÉZ E BANDEIRA, 1999, p. 13).

A violência urbana é um destino inexorável de todos os seres humanos que vivem em sociedade. No entanto os homens têm consciência da sua penetrância na cultura e faz de conta que nada está acontecendo, isso até quando ela não chega aos 10% mais ricos. A crença dos ricos que a violência não os atinge é o que fez atingir esse patamar. Hoje ela se aproximou dos ricos e se tornou um instrumento de manobras políticas. O rápido desencadeamento da violência urbana nas décadas de 80 e 90 do século XX e princípio do século XXI provocou espanto na sociedade e nos governantes. Mesmo prevendo o fracasso dela, assustam-se com os últimos acontecimentos e os especialistas em segurança recusam em aceitar a própria inoperância do Estado em combater a violência, pois, tanto o Estado legal, quanto à sociedade estão conscientes que são partes intrínseca e extrínseca de toda essa engrenagem que só tomará o ritmo certo quando ambos estivem na mesma direção.

A violência urbana vem crescendo há cerca de aproximadamente 50 anos, como resultado do processo de urbanização dos centros industrializados. As grandes cidades cosmopolitas, impiedosamente destruíram os laços de amizade entre os homens, fragmentando a sociedade em pequenos núcleos, instaurando um extremo individualismo. Nas sociedades urbanas a vida comunitária perdeu sua predominância, dando lugar a uma vida individual, onde as pessoas se encontram inseridas num controle total de amizades. A classe mais abastada da sociedade vive a agonia da proximidade da pobreza à suas mansões. O homem urbano é individualista, arraigado pelo desejo de vencer na vida, massacrado pelo capitalismo é obrigado a desempenhar funções que não escolheu e num ritmo acelerado, acha-se muito distante daquilo que desejou.

Sua vida se torna instável quando ele fica desempregado, um paralelo paradoxo, entre sua vida anterior e sua vida atual, ultrapassando sua consciência de ser humano do bem, agindo agora para a sua sobrevivência e de sua família. Quando o homem fica desempregado na cidade e não é resgatado novamente para o mundo do trabalho, ele sente uma preocupação mórbida de conseguir dinheiro para se manter. O homem urbano vive obcecado por dinheiro.

O crescimento urbano descontrolado está levando as grandes cidades à beira do colapso, provocando muita miséria, ocorrendo com isso o fenômeno da exclusão social. Não apenas a disparidade entre ricos e pobres que tem crescido nas últimas décadas, como também o número de famílias que vivem no limite ou abaixo do limite de pobreza. A exclusão social não se refere apenas à situação econômica dos indivíduos. Outros fatores também podem levar a marginalização, como a descendência étnica, o sexo, a idade, o local de residência, a religião ou a condição de emprego.

E essa marginalização calcada nessas diferenças contribui significamente para a intensificação da violência. Isso demonstra uma forma trágica da criação de um novo mundo, “o mundo do crime”, como é designado pelo Estado. No estado de organização que os criminosos chegaram fica difícil á desestruturação desse segundo estado, que oferece segurança àqueles que lhes são fiéis. Os criminosos usam do mesmo estatuto do Estado, e institui deveres e direitos como ressalta Walter Maierovitch, as entidades criminosas prestam algum socorro, mas o preço é a eterna dependência, como se no Estado legal fosse diferente.

Em São Paulo, maior cidade brasileira, com mais de dez milhões de habitantes e aproximadamente duzentos mil presos, as organizações criminosas disputam poder com o Estado legal, instituindo entidades do crime como: PCC – Primeiro Comando da Capital, CRBC – Comando Revolucionário Brasileiro da criminalidade, CDL – Comissão Democrática de Liberdade, SS – Seita Satã, CJVC – Comando Jovem Vermelho da Criminalidade. No Rio de Janeiro segunda cidade brasileira em número de criminalidade, também tem suas organizações criminosas, como o CV – Comando Vermelho, TC – Terceiro Comando, AdA – Amigos dos Amigos e outros. Belo Horizonte, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, são cidades que segundo dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública também têm suas organizações para o crime.

A civilização urbana concorre para essa transmissão de violência, o ser humano é obrigado a lutar pelos seus direitos, usando até mesmo de violência. É, pois, esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra de sua natureza. Embora com possibilidade de escapar de suas paixões em contraste com a razão, ao reconhecer sua posição social, faz uma avaliação e escolhe em buscar recursos, essa escolha precede o que pode ser honesto ou desonesto, os objetivos têm que ser atingidos a qualquer custo. A consciência do errado ajuda a questionar não só o tempo que trabalhou honestamente e não conseguiu muito para sua vida quando atinge um resultado favorável com o ato ilegal.

O mundo sofre hoje uma guerra silenciosa, sintoma que o infecciona social, cultural e economicamente. A violência cada vez mais se avizinha da classe média alta brasileira. Tomemos como ponto de referência à cidade de Brasília para se falar do tema “violência urbana”. Brasília como capital do país, planejada para chegar ao terceiro milênio com uma população de aproximadamente 500 mil habitantes, hoje ultrapassa os dois milhões. Longe de alcançar suas aspirações de cidade ordeira, trilha um caminho com milhares de obstáculos sociais.

Uma cidade empedernida pelo poder, “são muitos caciques para poucos índios”, com uma política de apadrinhamento e um modelo de combate à violência americanizado, - baseado na “tolerância zero” - onde se escondem dados estatísticos, não é suficiente para manter a cidade fora da estatística mundial da criminalidade, mas suficiente apenas para mantê-la sim, como uma das cidades mais violentas do Brasil, desafiando as medidas repressivas do governo. A violência também tomou lugar nos castelos privilegiados da cidade modelo.

Grupos de jovens dessas residências se unem para espancar outros jovens, chegando até mesmo a matá-los. São os “respingos de sangue” da violência própria dos menos favorecidos que atingem as mãos da juventude das classes mais abastadas. São fatos estarrecedores, como a queima de pessoas, espancamentos e mortes de jovens, envolvendo adolescentes desse segmento social. Quando se torna notícia em âmbito nacional, essa hipócrita “classe” se mobiliza para fazer campanhas pela paz, ignorando que esta circunstância é provocada pela rejeição que sofrem as pessoas de baixo nível, dentro do contexto econômico e cultural. (GOMES 2000, p. 02).

Todavia, não devemos nos iludir sobre o que foi dissertado anteriormente, nem romantizar os fatos da história. É impossível diminuir a violência, em particular a violência urbana, com programas de segurança intolerante. Isso não significa que não precisam ser tomadas medidas enérgicas. Não se trata de uma impossibilidade absoluta. Mas, o que não é absolutamente possível é manter a sociedade sobre essa pressão, sem ser atendidas as suas reivindicações.

Neste instante o povo brasileiro vê-se ameaçado por uma guerra civil, entre criminosos e polícia. Isso significa que os privilégios da minoria dominante, contra a maioria submetida têm que ser dividido para todos. Mas, sabemos que isso não é o bastante, faz-se necessário que, aliado a isso, todos os direitos e obrigações sejam respeitados como reza a Constituição da República Federativa do Brasil. É necessário, pois, analisar detidamente quais as formas particulares de violências para combatê-las eficazmente para guiar o País ao caminho do primeiro mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANHA, Maria Lúcia de Almeida e MARTINS, Maria Helena Pires. Introdução a Filosofia, Editora Moderna. 2. edição, São Paulo, 1993.
As raízes da violência brasileira: “Reflexões de um antropólogo social” in R. da Matta (org), A violência brasileira, Brasiliense: 1982.
Brasil, Guerrilheiro urbano, Revista ISTOÉ 1563, de 15 de setembro de 1999.
DADOUN, Roger, A Violência, Ensaio acerca do “homo violens”, DIFEL, p. 43-45. 1993.
Desenvolvimento desigual: impasses a sustentabilidade. PESQUISAS, São Paulo: 1998.
GOMES, Manoel. Respingos de Sangue, Papo & Poesia, Ano I, 4. Edição, Outubro de 2000, p. 02. Distrito Federal.
HANAH, Arendt. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Perspectiva, 1972, p.129.
ROUSSEAU, Jean-J. O Contrato Social, Coleção, Os Pensadores, p. 42.
MICHAUD, Yves. A Violência, Editora Ática S/A, São Paulo, 1989.
SUARÉZ, Mireya e BANDEIRA, Lourdes (orgs). Violência, Gênero e Crime, no Distrito Federal. Paralelo 15, Distrito Federal: p. 13, 1999.
VÉRAS, M. P. B. A Nov(a) (c)idade do gelo. Notas perplexas sobre os novos nômades urbanos. São Paulo em Perspectiva, p, 15. São Paulo: 1995.

DUAS MULHERES, DOIS AMORES, OUTROS DESTINOS

Manoel Gomes


Vieram-me a mente duas mulheres que não precisam sair do meu pensamento, as mulheres as quais me uni uns dias. O nome de uma delas é de guerreira. Pelos menos é o que conta à história dos mitos. Não vejo qual interesse possam ter as pessoas por essa história se vou mentir a respeito. Evidentemente, nunca se sabe, quanto de verdade ou de mentira existe na vida de alguns casais. A mulher nunca foi reconhecida o ser da verdade, por isso, a mulher mente mesmo. Eu também, não sendo o mais honesto entre os homens, talvez confirme a teoria de que a verdade não passe de um estado de espírito.

Igualmente a minha família, era a sua família, nunca me esqueço. Está anotado numa parte do meu corpo como numa folha de papel, guardado para ser lida na prosperidade, uma relação de nomes próprios. Conheci Clarissa numa noite, à margem do rio, um dos dois, pois naquela cidade existem dois, consigo distingui-los. Um é de água salobra, o outro de água doce, eram muito bonito, na ciliar um monte, onde pela floresta, era parcialmente encoberto, graças às árvores veneráveis que flanqueavam as margens dos dois rios de um lado e de outro.

Foram essas árvores que deram beleza à noite, mas o brilho da lua clareava todas as folhas, a idéia de um lugar destinado ao amor para alguém. À frente, a poucos metros da margem encontramo-nos, se é que esse encontro tem muita importância para ser mencionado, eu sei que foi assim, também por outro lado eu fui surpreendido. E, não obstante, ela me surpreendeu. Eu observava o horizonte, o tempo estava bom, e olhava por entre as folhas que as árvores sombreavam nossas cabeças, e as nuvens, que se movimentavam no ir e vir da brisa embelezava mais aquele céu estrelado. Meu primeiro movimento foi abraçá-la, mas sem saber para onde irmos. Nossas pernas impediram outro movimento. Portanto, meus pés prenderam-se ao solo, juntaram-se nossos corpos, e ali ficamos. O que aconteceu entre nós, naquela noite, logo depois, de ela ter falado apenas um canto para si, sem as palavras felizmente, uma das antigas canções da terra, de um modo curiosamente pragmático, pulando de uma para outra, e voltando àquela que interrompera antes de ter terminado, que eu preferira. Tinha uma voz afinada, agradável. Percebi sua alma suave. Mesmo na grama, se sentou logo, quando a nós bastou um olhar. Era na realidade uma mulher educada. Voltar no dia seguinte foi o compromisso mais ou menos, com um beijo. Algumas palavras foram firmadas, talvez afirmadas.

No dia seguinte esperei-a no mesmo lugar, mas enganei-me, ela não veio. Perguntei se era protesto ou era para me incomodar com sua atitude. Mas não me incomodei. Ela e seu olhar sem dúvida me incomodaram e eu a esperei. Não devia esperar muito. Suas pálpebras talvez tivessem enrubescido a sua testa, obscuramente, tinha solidão. Pensei que estivéssemos bem, falou ela, é que você me controla, disse eu, não posso pensar em você longe de mim. Eu lhe confessava meus olhos enfiados em seu dorso, ela me ouvia, e assim, me aceitava. Você gosta mesmo de mim? Perguntei. Ela disse, esse texto é meu. E disse que o erro das palavras está como as pessoas colocam na vida.

No minuto seguinte ela pede-me amor rogando. Coloquei-na sobre minhas penas, suas coxas. Ela quis acariciar o meu corpo. Eu quis logo abocanhar seus seios, eu acredito. Ela veio logo se deitar com seu longo corpo. O que mais me interessava eram seus súditos seios, dos quais a posição ficava na minha cabeça, era o mais perfeito dos reflexos. A respiração era real, me vinha à idéia de eu ainda criança, resíduo na memória da amamentação, e dela, eu não me apartei por indiferença.

Mas hoje tenho excitação, como homem moderno, fisicamente bem no tempo e na sorte de todos os meus desejos. Eu mesmo não posso evitar. É possível ter excitação, com apenas uma lembrança. Naquele dia eu percebi, naturalmente, as mulheres sentem o cheiro do sexo, sentem à distância. Como pode isso acontecer? Naquele momento éramos nós mesmos, nas condições que estávamos, era possível perceber que poderia o tempo nos pertencer. Não sei se isso importa. Pois quando estou na cama, com uma mulher tento fazer o melhor do encontro, ao passo que, não preciso ser mais um, ou qualquer um. Tenho que ser eu, sem disfarce. Entendo que o amor não é o exílio, mas a forma de se encontrar na terra foi o que fiz do meu sentimento naquela noite, nascer para a terra.

Quando terminamos eu e ela estávamos domesticados, com ajuda dela reconstruí minha consciência e logo encontrávamos sós, tudo isso é a realidade das coisas, se passaram desse modo, foi segundo a minha existência. E a imagem dela permanece ligada a mim, para mim, naquela noite, demorou amanhecer, falar como eu a senti, falar dela, do prazer, não preciso provar nada, nem quero provar.

Quanto a Clarissa, quero falar dela, nunca fui apaixonado, perdidamente apaixonado, eu a deixava cedo em casa e voltava para os braços de Susane. Sim, durante o dia eu a procurava para transarmos. Querem me perguntar, com certeza querem perguntar, o que eu encontrava em Susane e não encontrava em Clarissa. Não era o dinheiro que o pai de Clarissa deixara, nem a beleza de Susane, eu diria que nada, além das duas serem a soma perfeita de inteligência, beleza, sexo, que eu as aguardava com desejo, o que me fazia mais homem.

Isso não durou por muito tempo, nem mesmo por dois outonos, mas meu desejo durará para sempre, minha alma diz isso. Finalmente, eu as deixei, para minha surpresa, elas me esqueceram o que me incomoda profundamente, mesmo agora. Aliás, elas continuam a me aporrinhar, somente pela razão de eu as desejar, elas e seus corpos. Isso não significa que, agora, desejo-as e tenho que controlar o sistema límbico, ou arriscar uma anomalia, logo acaba as perturbações, os desarranjos dentro da mente, em pouco tempo não se farão presentes, nem Susane, nem Clarissa, quero que elas venham me amar, é o que quero.

É incrível como as pessoas acreditam nas mentiras bem formuladas sem perceber que correm o risco de ir para a fogueira por acreditar naquilo que ouviu. Diz-se que elas vêem de tempos em tempos. Conheci mulheres, naquela cidade, não conheci os limites da dissimulação. Ainda as conheço. Mas, aliás, outros homens também, verdadeiros animais. Os conheço, mas menos más que as minhas dores. Eu sinto-as todos os dias, o sentimento anda depressa, mas elas não vêm todas de uma vez. Sim, há horas, sobretudo à noite, em que me sinto como um pessimista, ou um niilista a minha maneira.

Um desequilíbrio. Aliás, eu conheço mal também minhas dores. Isso talvez venha do fato de eu não sentir senão dores. Eis a angústia. Então eu me distancio, até o espanto, até a admiração, de outro sistema. Raramente, mas isso basta à vida. Sem as dores, isso simplificaria as coisas! Ser outro personagem? Mas isso seria um ser desleal. Mas, as tenho, certamente, um dia, ficarei sem passar por isso, se eu puder, sem as minhas dores, o meu entendimento, com as dores do coração, minhas dores afetivas, dores da alma (as da alma) e, depois, as dores do coração, a princípio ocultas, em seguida as da superfície, começando pala derme (do corpo) descendo metodicamente, sem me apresar as dores dos escrotos, lugar de sentimentos e desejos estranhos, mas satisfatórios.

Para os que forem amáveis para ouvir-me, falarei como Charles Bukowski, bêbado, em êxtase, e apaixonado. Então, naturalmente ele sabia, entendia o tempo, eis que estou sujeito a provocar controvérsias. Digo que sinto o amor com freqüência. Não fosse de todo, se pudesse o possível. Aliás, no dia seguinte fui abandonado, menos por Susane, mas por Clarissa, cujas correspondiam as minhas necessidades, apesar de honestas, pois, primeiro começaram a fazerem-se sentir, e ainda por outras razões que mencionaram o refúgio na beira do rio, havia acontecido mudança.

No ângulo do campo que mostrava a superfície, as rosas, mas o solo possuía, talvez, propriedades saudáveis. Foi nesse terreno de grama verde e viço que nos amamos, suspiramos, apertávamos as mãos, que pela primeira vez em minha vida, diária, a última, se não tivesse o solo, deixado uma substância afrodisíaca em nossos corpos, teria que me oferecer um sentimento que me rogava o espírito dela, exigia amor. O que faz o encanto da terra, além, é claro do fato de nos renovar, apesar de encontrar nela a dúvida, um preservativo, tudo se renova alhures da história. Recolhi-me ao empenho, numa passeata ao seu coração. Em todo, ou em parte o tempo fez-me tatear seu rosto. Um paraíso na relva. Eis finalmente, o que explica minha saudade.

Convidado ao prosperamento. Vejo nossa ligação. Logo existiu, não tenho dúvida. Sim, eu a amava, é o verbo que dou, felizmente hoje, e naquela época. Não tinha nunca amado antes, mas tinha ouvido falar de amor, naturalmente, eu tinha lido romances, onde se tratava intensamente disso. Estou, portanto, apesar de tudo, sem condições de dizer o que fazíamos, quando me vi de repente escrevendo o nome dela com sangue numa quaresmeira. Deitado ao luar, na relva, em pétalas e as flores sem espinhos. Eram flores, havia de muitas, isso me aliviava, embora seja de minha natureza admirar as flores, eu lhe alimentava com amor. E as flores a embelezar esse nascimento.

O amor nos torna bons? É certo? Mas o amor é maior que a paixão, é santificado, é mesmo! Ou será que confundo com outra verdade? Há tantas, não é? Há flores, cada qual mais bonita, não é? Amor a primeira vista, por exemplo, eis a frase que me lembro neste instante. Amor desinteressado. Será que eu a amava? Quero acreditar nisso. Será que eu teria escrito o seu nome na velha árvore do centro da cidade com a simbologia do coração? E além do mais escrever com o anel que estava em seu dedo, e em seguida eu a beijava? Eu penso nela. Isso não quer dizer tudo. Quero dizer que, no meu entender continuo apaixonado por Susane, mas me lembro de Clarissa, por certo, são dois nomes, considero os mais importantes de minha vida?

Então, penso em Clarissa? Eu aprendi a não pensar nela, exceto nas horas de dores, muito rapidamente, depois talvez o tempo me faça sentir envergonhado, mas nunca sob o pretexto de está vivendo para ela. Não importa o que eu tenho a dizer sobre isso. Pois sempre falei dos meus sentimentos, não sei se existiram, ou se existirão, provavelmente, a minha existência, as atribuo. As duas mulheres, elas existem realmente, duas mulheres, dois sentimentos, duas esperanças que aparecem para mim todos os dias, mas como tê-las comigo. Escrevi os dois nomes em algum lugar, elas me eram como o céu para o meu mundo.

Ora, elas me deram um lugar para eu escrever seus nomes, aquele que de melhor herdei na vida, o coração, que nunca esteve em outro lugar senão em mim. Ele vai me acompanhar na vida e na morte, aliás. Então eu penso nas duas mulheres, muitas vezes por dia. Chego a pensar se devia ficar pensando nelas dessa forma, esse deve ser o meu jeito de amá-las. Será necessário concluir que eu as amava com esse amor passional que já me arrancou tantas tolices. Posso crer que as amei, se as tivessem me amado desse jeito, certamente me divertiria escrever os nomes Susane e Clarissa nas minhas memórias.

Peço para arrancar os gerânios que nascerem no meu túmulo, é apreciável sentir sobre meu corpo os corpos delas palpitarem, dois seres vivos? Para pôr um fim, tentar pôr um fim nessa situação. Fui certa tarde ao lugar onde nos encontramos àquela hora, e ela não veio ao encontro. Não esperava, e a esperei em vão. Era já o mês de dezembro, talvez o de janeiro, e o frio era o da época, ou seja, adequado, justo, perfeito, como tudo o que é da época.

Mas de volta, em casa, não tardei em armar uma argumentação que me assegurou uma noite excelente e que se baseava no fato de ter a hora oficial tantas maneiras de se apresentar, no ar e no céu, no coração também, quantos dias têm o ano? No dia seguinte, portanto, cheguei cedo, muito mais cedo, bem no começo da noite propriamente dito, mas ainda assim tarde, pois ela já ali estava, na relva, sob a sombra das árvores que estalavam com o frio. Eu já disse que ela era uma mulher muito educada.

A terra estava fria, eu a sentia nos meus pés. Eu me interessava poder ter ela sobre mim. Perguntei se ela me sentia. Andando de um lado para o outro e batendo forte com os pés no chão. O terreno era irregular. Ela respondeu que me sentia. Queria me ter. Implorava e me disse, se fosse possível. Respondi que lhe daria. Estávamos vestidos de roupas leves. Conservamos as mãos juntas, lembro-me que ao olhar seu rosto. Pus-me a chorar. Não obstante, esquecemos da hora. Aquilo não era mau. Tirei vantagem disso.

Agora eu quero chorar. Não consigo de jeito nenhum deixar de pensar nelas. Creio sinceramente, que isso não é mau. Elas são o que me fazem reviver. É o bastante, e tenho que pesar todos os prós e contras. E quando me surpreende esse pensamento chego a chorar sem causa aparente, mas é saudade.

Eu que choro por qualquer coisa, mais choro de aflição. De modo que me pergunto se é realmente a saudade que me faz chorar. Naquele entardecer, se não era antes o caminho, cuja dureza e depressões me teriam feito lembrar as palavras, ou ainda outra coisa, uma coisa qualquer que eu teria dito, sem prestar atenção. Eu as vejo, por assim dizer, como duas deusas.

A cabeça inclinada, com as mãos no bolso, as pernas apertadas uma a outra. Não tinha a minha idade, quase não parecia, era uma jovem senhorita. E aquele jeito de responder. Eu não sei. Eu não posso. Eu era o único que não sabia nem podia. Foi por minha causa que veio? Disse eu. Sim, disse ela. Está bem, aqui estamos, disse eu. E eu, não era por causa dela que tinha ido? Aqui estou, disse pra mim mesmo, sentei-me ao lado dela, mas levantei-me logo, de um salto, como se tocado por um fervor.

Eu tinha vontade de ir embora, para saber se havia acabado. Mas para ter mais certeza, antes de ir pedi que me cantasse uma canção. Achei a principio que iria recusar, quero dizer simplesmente não cantar, mas não, depois de um momento ela se pôs a cantar, e cantou durante um bom tempo, sempre a mesma canção, creio, sem mudar de posição. Eu não conhecia a canção, não tinha ouvido nunca e não a ouvirei nunca mais. Lembro-me apenas de que falava de limoeiros, ou laranjeiras.

Não sei mais quais, e para mim é um feito não ter esquecido que tratava de limoeiros e laranjeiras, pois das outras canções que ouvi em minha vida, e ouvi muitas, pois, é materialmente impossível, mesmo do jeito que eu vivia, sem ouvir cantar a menos que fosse surdo, e não me lembro de nada, nem de uma palavra, uma nota ou poucas palavras. Este parágrafo não pode ter mais que esse conteúdo, já durou muito.

Depois, afastei-me, ao me afastar, eu a ouvi cantar outra canção, ou talvez a continuação da mesma, com uma voz franca e que se ia enfraquecendo cada vez mais, à medida que eu me afastava, e que finalmente se calou, seja por haver terminado de cantar, seja por eu está muito longe para poder ouvi-la. Não gostava de ficar na incerteza naturalmente, na incerteza, mais aquelas incertezas, de ordem física como se diz, preferia livrar-me delas imediatamente.

Para tanto dei alguns passos atrás e parei. A princípio não ouvi nada, depois ouvi a voz, mas muito mal, tão fraca me chegava. Eu não a ouvia, depois a ouvia, devo, portanto, ter começado a ouvi-la, num certo começo, de tal modo. Quando a voz finalmente parou dei ainda alguns passos na direção dela, para ter certeza que havia cessado e não apenas baixado. Depois, convencendo-me, dizendo a mim mesmo. Como saber sem estar ao lado dela. Dei meia volta e me fui, deveras, cheio de incerteza. Algumas semanas depois, voltei ao mesmo lugar, era a quarta ou quinta vez depois de abandoná-la, à mesma hora mais ou menos, quero dizer mais ou menos sob o mesmo céu, pois nunca é o mesmo céu, como dizer isso? Mas de repente ali estava não sei como, eu não a tinha visto vir, nem ouvido vir, e não obstante, estava atento. Digamos que chovia isso nos dificulta um pouco os sentidos. Ela se protegia com um guarda-chuva, naturalmente. Perguntei se voltava ali todo entardecer. Não, disse ela, apenas de vez em quando.

A relva estava úmida demais para que ousássemos sentar. Caminhamos de um lado para outro, eu lhe segurei o braço, por curiosidade, para ver se isso me daria prazer, mas não me deu nenhum prazer, então o larguei. Mas porque esses detalhes? Para retardar o final. Eu vi um pouco melhor seu rosto. Parecia-me normal, seu rosto, um rosto diferente de milhões. Ela chorou, mas isso só soube mais tarde. Ela parecia mais velha, seu rosto estava como que suspenso entre o frescor e o sofrimento. Eu estava mal, naquela época, esse tipo de amabilidade não aparecia no meu rosto, ou não tinha possibilidades de aparecer? Confesso que eu sofria. Vi no rosto dela, talvez dispusesse de mais beleza. Diferente do meu rosto, talvez no meu leito de morte, haverá a possibilidade de uma melhor estética, de ser humano.

Mas nos rostos vivos, as marcas de sangue à flor da pele. Eu a admirava, apesar da obscuridade, apesar de minha perturbação, o modo pelo qual ela estava imóvel, se ergueu na minha direção, na altura de minha boca, com se tivesse sede. Ela me perguntou se eu queria que cantasse alguma coisa. Respondi que não, que estaria bem de acordo com seu jeito de ser. Fiquei, portanto, agradavelmente surpreso ao ouvi-la dizer que me queria muito, com clamor. Queres-me? Exatamente eu? Disse. Ela respondeu que sim. Isso aumentava as chances, outra vez. Então fomos nós dois para seu quarto. Sim, disse ela. Enfim, esse assunto é digno. O desejo de ficar sob mim, disse ela.

Perguntei-lhe por que não me tinha dito antes. Eu devia estar fora de mim, naquela época. Não me sentia bem ao seu lado, exceto pelo fato de que me sentia livre para pensar em outra coisa, que não nela, e isso já era muito, nas velhas coisas experimentadas, uma depois da outra, e assim, pouco a pouco, em nada, como em degraus que desciam para um lugar profundo. E sabia que a deixando eu ganharia, ou perderia a liberdade.

Eram na verdade nós dois juntos, ela não havia mentido. Ela queria que eu morresse com ela. Expliquei-lhe que não tinha intenção. Estávamos na sua cama, da janela podia ver a montanha. Ela ascendeu sobre meu corpo. Você não tem necessidade? Disse ela. Não, disse eu, mas tenho desejo. Ora, disse eu, você é sagaz. Ela se despiu. Quando ela não sabia o que fazer, se despia, é sem dúvida o que de melhor as mulheres fazem. Tirou tudo, lentamente, exceto as meias, destinadas sem dúvida a aumentar minha excitação.

Não era a primeira vez, que eu via uma mulher nua. Portanto, eu sabia que ela iria me espoliar. Disse-lhe que queria vê-la toda, pois ainda não havia visto. Se a tivesse visto, teria dito que queria revê-la. Tire sua roupa, disse ela. Tirei a roupa com eloqüência. É verdade, sou um sujeito que me dispo com facilidade. Tirei os sapatos ao me sentar, quero dizer, ainda fiquei com as roupas internas, pois a temperatura era fria. Ela, portanto, se mostrou cortês, com um roupão me aconchegou. Teríamos que ficar sob o cobertor. Quando me dei conta, ela disse talvez eu saiba um caminho mais fácil. Eu a olhei com amor. A sensibilidade de minha imaginação. Então, sabia que eu a vi em outro lugar, fora daquele quarto. Que sentimento é este? Exclamei. É excitação, disse ela.

Comecei a tirar o que sobrou de suas roupas, seu corpo tremia, pelo menos tremia, eu suponho, pois na verdade gemia. Ela me perguntou o que estava fazendo, mas sem esperar resposta, acredito. Eu retirei as duas peças do seu corpo, ao mesmo tempo, as empilhei sobre o sofá. Havia dois grandes e um pequeno. Ficamos, finalmente, de modo que não podíamos mais deixar aquele lugar. Podia-se abrir a porta, ou fechá-la, que se movimentávamos para a cama, mas ela havia se tornado amável. Uma frase, disse ela. Coloque-me pelo menos nos braços. Eu lhe falei da minha satisfação, talvez, finalmente, uma espécie de gemidos fixos na parede. No dia seguinte, coloquei fora meus sentimentos. Uma estranha recordação. Ouvi uma palavra, não sei qual, não sei o que isso queria dizer, e nunca tive a curiosidade de saber. As coisas das quais me lembro. Tudo estava em ordem, deixei-me cair sobre ela. Ela não moveu um dedo para se negar.

Traga as cobertas, disse ela. Mas eu não as queria. Feche as cortinas, disse eu. A janela estava aberta. O clima estava brando, porque já era manhã, mas estava um pouco escuro. Fui útil ao deitar-me, aquilo me assegurava à liberdade. Levantei-me, mudei de posição, a princípio eu havia ficado sobre ela, voltei-a para o lado de cima. Era o lado certo, ela estava no comando.

Depois de ela subir em mim, fiquei a mercê de seus desejos. Eu deixo a decisão para você, disse ela, mas pedi-lhe que continuasse. E você precisa de mais alguma coisa esta noite? Disse ela. Ia começar a remar, eu sentia. Sabe o que é remador? Disse ela. Eu não pensava que fosse isso? Aliviar-me na cama foi agradável naquele momento, depois, adormeci.

Eu gostei muito, enfim gostei bastante, posição de remador me faz pensar no oceano, ou no caudaloso rio, não sei, mas ela gostou, nós dois, talvez, sim, eu li no seu semblante, e através dele ela pronunciava o verbo gostar. Ela não parava. Uma espécie de erupção humana. Eu a vi sentada sobre mim, hirta como estacas, e orgulhosa, por receber tanto, talvez, fosse à nova posição que ela estreara, ou antes, teria desejado. Mas dai-me mais, disse ela.

Ela se voltou para mim como uma espécie de carola, mas não era uma carola, nem era inocente, era uma mulher experiente. Você não precisa me dizer, disse ela. Sei que precisa disso. Você precisava, tanto quanto eu, disse. Gosto de assegurar a satisfação dos meus desejos, completos. Não tenho medo, ainda estou me molhando, disse ela. Virei-me para ela. Ela apanhou-me com suas mãos rápidas e colocando-se novamente por cima de mim, sua boca gesticulava, achei que ia morder-me, mas não, veio inclinar-se sobre mim, por cima do meu rosto. Tudo isso é para você, disse ela, numa ânsia efêmera se mexia.

Eu já não a amava mais. Sim, eu já não me sentia tanto melhor, mas estava na direção de longas submersões de que há muito tempo eu estava privado, por minha culpa. E apenas acabávamos de transar. Pareceu-me que o sentido dessa palavra, esse detalhe só tomei conhecimento alguns segundos depois de ter acontecido. Tinha tão pouco o hábito de falar o que me acontecia, de tempos em tempos, deixar escapar, frases imprescindíveis do ponto de vista passional, mas totalmente destruído, não direi o significado, pois, se bem examino esses fundamentos, sei que tenho razão.

Mas, eu continuava a ouvi-la, à medida que me indagava. Foi a primeira vez que sua voz me chegou com tal lentidão. Virei-me de costas, para ver o que se passava. Ela sorria. Pouco depois foi embora. Eu a ouvi atravessar a porta e fechar atrás de si. Eu estava finalmente só, finalmente. Não falarei mais disso. Eu acreditei que tivemos uma boa noite, apesar da casa ser dela, mas não estranhei, minha noite foi exatamente, diferente. Acordei no dia seguinte muito cedo, as roupas em desordem, as cobertas também, Susane estava ao meu lado, nua, naturalmente.

O esforço que deve ter feito! Eu continuava a admirá-la. Olhei meu sexo. Se ele soubesse falar. Não direi mais nada sobre isso. Foi essa a minha noite de amor. Minha vida organizou-se ao lado dela. Ela me tinha afeições nas horas certas. De quando em quando perguntava se eu estava bem, ou se precisava de alguma coisa. Nem sempre eu resistia à atenção e falava, mas de um modo geral eu não tinha que me queixar dela. Eu a ouvia cantar de tempos em tempos em seu quarto, a canção atravessava a porta do quarto, chegava até mim, indiscutível. Isso não me incomodava muito, ouvi-la cantar de tempos em tempos.

Um dia pedi-lhe que me trouxessem margaridas, num vaso. Ela me trouxe e eu a pus na janela. Havia em nosso quarto, um espaço no alto da janela, que fossem colocadas lá, disse ela. Eu as olhava todos os dias. Eram azuis com branco. Eu preferia as bem azuis. A princípio elas foram bem ao nosso relacionamento, somente flores, depois capitulamos, e as pétalas das margaridas dentro em pouco caíam, e só restaram as folhas chorosas. Como um peixe fora da água, como se buscasse oxigênio, cheirava o ar. Susane queria levantar-se, mas eu lhe disse que se aquietasse. Ela quis comparar-me a outros, mas eu lhe disse que não queria ser comparado. O que me perturbava mais eram esses outros, num gemido, a casa se enchia surdamente de silêncio, em certas horas, tanto de dia como de noite. Eu não pensava mais em Clarissa, não pensava mesmo, mas tinha ainda assim necessidade do silêncio para poder viver.

Por mais que eu racionasse, dissesse que o ar é feito para carregar os ruídos do mundo, e que risos e gemidos participam intensamente dele, nem por isso me afligia menos. Eu não conseguia decidir se ela sempre me comparava a outros homens. E os segredos! Eu tinha horror, naquela época, cheio de perplexidades e todas, às vezes caí na armadilha, quero dizer, tentava saber ao certo. Dediquei muito tempo a minha vida, por assim dizer, passei a admirar a cor dos olhos de Susane, e a paciência que ela tinha, estava perto da beleza de Vênus, no inferno da arrogância da existência, ou da gênese da existência de nós mesmos, que exige sabedoria, para os que dela se abrevia. É pouca, toda a minha vida, para chegar a esta conclusão, nos restava o tempo para aproveitar. Estávamos bem avançados. Tendo interrogado a Susane, ela me disse que estava ciente que eu a abandonaria. Eu teria podido naturalmente me levantar e ir embora, supondo-se que não fui, mas o que se pôde ver? Então você quer que eu vá, disse eu. É nosso destino, respondeu ela.

Ela sabia de Clarissa, pediu-me para não fazer escândalo. Como se eu fosse de escândalos. Acabo de dizer. Critiquei, não sou do tipo. Eu sei, disse ela. Vou embora, disse eu. Ela procurou perdurar nossa conversa. Perguntei-lhe se seria possível, de tempos em tempos, transarmos. Uma relação amorosa! Exclamou ela, manifestando o desejo. Observou, só podemos transar na minha casa. Uma relação amorosa! Exclamou ela. As relações amorosas tinham gosto de framboesa, para mim. Gostava delas, pelo gosto de framboesa e pelo perfume doce de Susane, mas ela queria experimentar o sexo mais profundamente.

Se não houvesse jardins na terra, mesmo assim, eu gostaria das rosas, e se as flores não existissem, os jardins na terra, tudo me seria indiferente, quanto às rosas, são as margaridas. E mesmo na atual estação, quero dizer neste mundo onde os jardins e as rosas encontram-se no meio do coexistir, eu passaria facilmente, entre uns e outros. Um dia ela teve de anunciar que estava grávida, que era meu filho. Convidou-me a olhar sua barriga. Despiu-se, sem dúvida para provar que não era nenhuma mentira, mostrou sua barriga pelo puro prazer de despir-se. Isso é simples, assim mesmo, disse eu para confortá-la. Ela me olhou, seus olhos lacrimaram cujos não me esqueço, seus olhos grandes estavam voltados, aparentemente para as margaridas. Quanto mais ficou nua, e mais bela. Olhe, disse ela, colocando as mãos sobre seus seios, a barriga já estava crescendo.

Reuni forças e a beijei. Parada como uma montanha, impassível, secreta, onde na manhã sentiria, senão a brisa, e o pequeno dando golpes na interna, trabalhando. Ela, durante a noite estava quente, perfumada e selvagem, à noite, as luzes da cidade, se eu as quisesse, as outras, do teto brilhavam com ela. Quem havia me ensinado quando pequeno? E eu armazenaria na memória, que um dia eu entenderia todos esses eventos da natureza humana, se quisesse.

A partir daquele dia, as coisas para mim, foram ficando piores, não que Susane me abandonasse, não poderia ter nunca me abandonado, ademais, o sentido da minha vida começara nela, e num certo momento ela quis me aliciar com o nosso filho, mostrando-me a minha responsabilidade. Nos seus ideais ia me dizendo que ele nasceu para perturbar nosso pensamento, e que a qualquer momento morreríamos, ela disse. Não havia mal nenhum, é certo, não era evidentemente o meu ideal, mas, não subestimava seus ideais. Não hesitei em aceitar. As pétalas já caíam. Eu tinha medo das primaveras. Não se deve ter medo da idade, também ela tem suas bondade, suas cálidas carícias passam depressa. Mas eu não sabia se naquela época, o quanto à vida podia ser ardil para aqueles que só tem a ela, e em qual sepultura poderia encontrar-me.

O que me deixou bem com o meu filho foi de ele parecer comigo. Fui muitas vezes acordado por ele. Ele queria se apossar de algo meu. Creio que seria uma mulher, sua mãe, parece que eu ouvia de tempos em tempos eles dois na cozinha. Isso me deixava intrigado, sem que me pusessem para fora. Pulei para fora da vida dela, não esqueci nada, abri a porta e me fui. Muitas coisas ela falou com carinho, mas passei pela vida dela, assim mesmo, a provocar esse estranho sentimento. Fugi do compromisso do casamento, apesar de tudo, ficamos unidos ao nosso filho. Foi um erro, os gritos dela me desafiavam. Era meu primeiro filho. Agora eles me perseguem aonde ando. Hoje, paro em frente às mulheres para receber o perdão. Se soubesse que esses gritos ecoariam em outros tempos, talvez, não os deixasse. Mas, não sabendo, não ouvi. Não sei onde estava. Hoje procuro entre as estrelas, mas não posso encontrá-los. Não obstante, eu devia encontrá-los. E o mundo me mostrou o sabor das mulheres.

Ele mostrou-me as duas, mas sozinho, e sozinho não sei encontrar-me. Comecei a brincar com as letras, se é que posso chamar de brincar a minha vontade de escrever, escrever um poema é um trabalho de brincar com a imaginação. Enquanto eu andava, ouvia o ruído de meus passos. Meu coração disparava, era medo? Mas tão logo parava, eu ouvia outros passos cada vez mais fortes e é certo que também senti uma lufada de calor, mas que diferença faz se alguém estivesse me acompanhado, se seus passos eram fracos e confundiam com a minha respiração. Durante anos acreditei que alguém me acompanharia. Agora, depois de perceber que meu pai tinha razão. Ter-me-iam sidos necessários outros amores, talvez, o amor das mulheres que me têm. Mas os amores, não os têm quando se quer!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Filosofia de Platão vs o Cientificismo de Aldous Huxley

O livro Admirável Mundo Novo foi escrito pelo inglês Aldous Huxley em 1932. Considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos. Era conhecido por possuir uma cultura enciclopédica. Era neto do cientista Thomas Huxley, de sólida reputação nos campos da zoologia e da medicina e defensor das teorias evolucionistas de Charles Darwin[1].

O livro trata da pureza da raça humana obtida a partir de estratégias de laboratório, onde as classes sociais estariam relacionadas a castas genéticas, uma idéia de progresso alicerçado apenas na técnica. Com esse modelo o homem tem o seu destino traçado e a sociedade fica dividida por semi-autônomos classificados em ordem decrescente. O tempo que o autor escolheu para ambientar a sua história foi o ano de 753 DF (Depois de Ford).

É uma visão futurista na qual o domínio quase integral das técnicas e do saber científico produz uma sociedade totalitária e desumanizada. É uma ficção que relata uma sociedade onde não haveria vontade livre, esta é abolida pelo condicionamento. A servidão seria aceitável devido a doses regulares de felicidade química; ortodoxias e ideologias seriam ministradas no curso do sono.

Estabelece-se em Huxley um misto de fantasia onde as crianças seriam concebidas e gestadas em laboratório, em linhas de produção artificiais, com um controle total sobre o desenvolvimento dos embriões pelos cientistas do Estado. O Mundo Novo descreve como a manipulação genética é possível e dar um enfoque ao problema da uniformização dos indivíduos. O autor cria um país sem crítica onde todos podem viver felizes a olhar para as boas notícias. E ainda descreveu com minúcia, uma sociedade ideal onde, para se manter a coesão entre indivíduos, deveria recorrer à engenharia genética, e tendo como o meio de produção mais elevado, o processo Bokanovsky, onde se poderiam ser gerados milhares de gêmeos idênticos.

A ficção huxleyana é teoricamente desafiadora, mas se importarmos para o presente é cientificamente possível. Já se provou através da técnica científica a produção de seres humanos in vitro, a clonagem de animais, o hibridismo vegetal. A manipulação de células, tanto vegetal quanto animal, produção de células troncos, a codificação genética da cadeia de DNA, a produção de alimentos transgênicos. Além da transferência de embrião que é hoje trabalho corriqueiro nos laboratórios de biologia de todo o mundo.

O que se pode inferir do Admirável Mundo Novo é que o autor teve apenas a preocupação científico-biológica, - talvez influenciado pelo seu avô, - sem cunho filosófico. Não passou pela idéia do inglês trazer o enfoque da filosofia primeira, ou seja, Huxley não trouxe base filosófica pré-socrática, pois, mesmo encontrando em Parmênides[2] a teoria de que o homem em princípio nasce de dentro de um peixe, isso aconteceria pelo processo natural e não pela manipulação dos óvulos. Ele também não buscou em Sócrates[3], Platão[4] ou Aristóteles[5] fundamentação para o seu conto. Seu pensamento era moderno, continua moderno no campo científico e vem se sedimentar na filosofia moderna, uma filosofia mais cientificista, mas não podemos compará-la ao projeto de Karl Marx[6], pois Marx apresentava uma filosofia revolucionária que procurava demonstrar as contradições internas da sociedade de classes e as exigências de superação. O que a superação não é admitida em Huxley.

Para estar certo dessa afirmação, comprova-se que os pré-socráticos romperam com a tradição mítica, para explicar seus pensamentos pelo método naturalista[7], isto é, explicar a natureza a partir dela própria, entender os fenômenos com base em causa puramente naturais. Apenas com esse enfoque podemos dizer, com certeza, que não podemos fazer um paralelo da filosofia pré-socrática à teoria huxleyana. Pois, os resultados advindos da incubação feita em Londres Central, seriam previstos no mundo grego como alienantes, numa estrutura de condicionamentos.

Em Sócrates encontramos os “diálogos” que também encontramos em Admirável Mundo Novo, mas são “diálogos” que apresentam um controle térmico-numérico que é mantido à temperatura do corpo. O que é singular no pensamento da filosofia grega é o conhecimento, esse é controlado no Mundo Novo. A descrição é a devida medida da teoria huxleyana, enquanto Sócrates e Platão defendem a liberdade de pensamento. Para o Estagirita “a vida sem reflexão não merece ser vivida”.

Para Huxley o que nutre o seu “Homem” é o controle da temperatura, a salinidade e a viscosidade das idéias, local onde se conservam os óvulos depreendidos e maduros. Platão valorizava os métodos de debate e conversação como formas de alcançar o conhecimento. De acordo com Platão, os homens deveriam descobrir as coisas superando os problemas impostos pela vida. A educação deveria funcionar como forma de desenvolver o homem moral. A educação deveria dedicar esforços para o desenvolvimento intelectual e físico dos homens, com aulas de retórica, debates, educação musical, geometria, astronomia e educação militar. Afirmava também que a educação da mulher deveria ser a mesma educação aplicada aos homens. E com a liberdade de pensamentos onde os mais aptos, procuram o conhecimento, uma seleção natural.

Mesmo que Aristóteles tenha influenciado o pensamento ocidental, não apenas o filosófico, mas também o científico, político e literário não podemos inferir nenhuma ligação da sua teoria científica à teoria científica de Huxley. Pois, Aristóteles não tinha conhecimento da manipulação do gen humano que levasse a produção de um clone, ou um híbrido. O cientificismo de Aristóteles abrange apenas o campo classificatório das espécies.
Não podemos imaginar uma volta ao futuro para compararmos o pensamento de Huxley a filosofia grega. Primeiro porque na “polis” de Huxley, o lema do Estado Mundial é: “Comunidade, Identidade, Estabilidade”. Na República de Platão o “amor à sabedoria” era a inscrição de entrada, o homem seria político por excelência e que fosse à praça como cidadão e fizesse do discurso, a identidade na polis como filósofo-político ou poeta tornando-se um homem livre.

Platão acreditava que o rei deveria ser um filósofo, o que Huxley acredita no contrário quando afirma: “não são os filósofos, mas sim os colecionadores de selos e os marceneiros amadores que constituem a espinha dorsal da sociedade” (Huxley 1932:10). E hierarquizou seu Mundo Novo em classes sociais que eram constituídas antes mesmo dos indivíduos nascerem. A classe Alfas era os detentores de conhecimentos, a casta alta, que se vestiam com roupas cinzas. Os Betas faziam parte da casta alta e eram os detentores das habilidades específicas para a realização de tarefas. Os Gamas eram responsáveis pela mão-de-obra formados pelo processo Bokanovsky[8] e vestiam roupas verdes. Os Deltas eram também mão de obra e formados pelo mesmo processo dos Gamas, era casta baixa, vestiam roupas cáqui. Os Ípsilons eram casta baixa, mão-de-obra, formados pelo processo Bokanovsky e vestiam roupas pretas.

Platão não pensava o mundo assim, dividiu o Estado ideal em três classes: os comerciantes, os militares e os reis-filósofos. Cada classe está associada a uma das virtudes tradicionais gregas: a temperança, o valor e a sabedoria. A justiça, que é a quarta virtude, caracteriza a sociedade como um todo. Usou para a análise da alma humana um esquema semelhante: a racionalidade, a vontade e os apetites. Uma pessoa justa é aquela cujo elemento racional, com ajuda da vontade, controla os desejos.

Ele considerou que existe um mundo com essências que não mudam, que são perfeitas. E se defrontou com o problema do ser. Uma vez que os sentidos nos revelam as coisas como múltiplas e mutáveis, ao passo que a inteligência nos revela sua unidade e permanência, procurou uma solução que conciliasse o testemunho dos sentidos e as exigências do conhecimento intelectual. Baseou-se nos conceitos matemáticos e nas noções éticas para demonstrar que as essências real e eterna das coisas existem. Usou como argumento à possibilidade de pensar figuras geométricas puras, que não existem no mundo físico. Da mesma forma, todo homem tem as noções de bem e justiça, por exemplo, que não têm correspondente no mundo sensível. Concluiu pela existência de um mundo de essências imutáveis e perfeitas, as idéias arquetípicas.

O rei de Platão é filósofo, que transmite a seus discípulos o conhecimento, porque concerne à razão, e não à experiência. A razão, utilizada de forma adequada, leva a idéias que são corretas, e os objetos dessas idéias racionais são os universais verdadeiros, as formas eternas ou substâncias que constituem o mundo real.

O rei de Huxley, Mostafá Mond é um cientista enclausurado em sua vontade de pesquisar o que não podia. Como administrador geral, sua principal função é de censurar toda obra que possa agravar a estabilidade da sociedade. E faz a todos entender que a liberdade é perigosa para a sociedade.

Huxley concorda que seu pensamento não se assemelha ao de Platão na sua segunda fábula “Retorno ao Admirável Mundo Novo[9]” categoricamente ele asserta: “Estamos longe da República de Platão, governada pelos cientistas em prol da humanidade”. (HUXLEY, 1957:35). Pois no seu mundo todos passam pelo processo de condicionamento. São obrigados a ouvir máximas didáticas, anos a fio, sobre bons costumes, o que se garante que todos respeitem as leis impostas e conservem a estabilidade.

Considerando Bernard Marx, um Alfa-mais, um homem curioso que desejava em primeira instância, relutar contra a sociedade, procurando respostas, procurando sentir reais emoções como o “filósofo” de Huxley, esse não se assemelha ao filósofo de Platão, que tinha convicção de seus objetivos, e mesmo em liberdade voltou para mostrar a seus companheiros a ignorância que eles viviam. Bernard Marx quando sentiu o poder nas mãos, revelou-se um agente contra a liberdade e a favor da estabilidade.

Ao tempo que Huxley escreveu sua ficção, o mundo vivia o pesadelo da excessiva falta de ordem, a liberdade de escolha estava restrita a poucas matérias da vida. E acredita-se que esse modelo o influenciou para construir o seu modelo de mundo, que traz em si a desumanização do homem, a morte do indivíduo, a dominação do espírito humano, a perda total da individualidade pelo coletivo, determinada por fatores genéticos e condicionamento constante, controlada pelos donos do poder.

Um poder centrado no regime de governo totalitário, que no lugar da paranóia, imprime-se à perseguição, alicerçada no terror científico, e a sociedade estar toda fundamentada na prática da eugenia, na hipnopedia[10], no condicionamento subliminal, onde se oferece diariamente, de forma controlada uma droga denominada Soma a todos os cidadãos.

Neste Mundo Novo a reprodução humana é inteiramente artificial. Dentre as várias regras, uma das mais importantes era a que induzia ao consumo do Soma durante os períodos de maior agitação ou depressão mental como forma de controle social. O que levava a elaborar a composição química do Soma para a próxima remessa, composto com mais calmantes ou mais estimulantes, de acordo com as circunstâncias do momento. O controle do Estado totalitário ocorria praticamente com a recompensa de comportamentos desejados. O controle do comportamento indesejável por castigo o que parecia menos eficiente que o reforço de comportamentos desejáveis.

No Admirável Mundo Novo, o controle da natalidade foi solucionado abolindo-se completamente a reprodução natural. Os seres humanos eram reproduzidos artificialmente, onde também se fazia uma (seleção de óvulos) para a produção genética de novos indivíduos. O que pode ser uma tentação para o poder, por parte dos governantes em aplicar o totalitarismo, o controle total e a repressão seria inevitável.
O maior problema que enfrenta a teoria huxleyana, além de poder se chegar ao totalitarismo é a aparente tendência humana à uniformidade e a superorganização da sociedade. A própria natureza mostra a ineficiência da uniformidade, ao longo de bilhões de anos de seleção natural[11]. Ao longo da evolução esta uniformidade se mostrou ineficiente para a adaptação das espécies a novas condições, e estas espécies foram lentamente sumindo.

É um paradigma o controle com tecnologia, fornecido por Huxley, mas pode ser aplicado na superorganização do mundo dos negócios, pois conduz a concentração de poder econômico e político como conseqüência do aumento da capacidade de produção. Nesse modelo o poder ditatorial, ou seja, as conglomerados de empresas, os grandes blocos econômicos vão pela tecnologia e pelo monopólio das informações levar a ruína às pequenas empresas, e essas grandes empresas passam a controlar o Estado. E esses grandes negócios artificiais passam a incentivar a massa ao consumo desenfreado, levando-a ao descontrole, e para mantê-la alheia a esse modelo, controla-a por meio de condicionamentos e doses constantes de drogas sintéticas.

Parece que o Mundo Novo sugestionou alguns segmentos da sociedade contemporânea, pelo menos no segmento do uso de drogas. Quando alguém está induzido a sentir emoções fortes sempre busca o auxílio de uma droga sintética, ou quando quer aumentar a sugestibilidade do ser humano para o sensualismo. Pessoas mais sensíveis podem ficar histéricas diante dos problemas pessoais e são controladas com doses de anfetaminas. Atualmente, além da tecnologia mais avançada, há conhecimentos suficientes para produzir um mundo bem mais admirável, sem a aplicação de métodos do Soma.

O que se pode entender do Mundo Novo de Huxley é que pela via da insatisfação o homem tem o controle do seu destino, mas tornando-se um alienado que troca a sua liberdade pela estabilidade, não se completa na sua felicidade. É a estabilidade que se exaltada e a felicidade que todos têm a custas da ignorância proporcionada pela absorção do Soma sob a forma de inalantes. O homem de Huxley suprime a verdade em troca de uma verdade mascarada.

Chegas-se a afirmação de que o horror que sentem os personagens Bernard e Lenina ao chegarem a “reserva”, com a podridão e a fedentina humana, é o mesmo horror que os jovens de uma classe alta sentem quando visitam curtiços e favelas nas grandes cidades. Dessas favelas pode sair sonhadores como saiu John “o Selvagem” que procura outros horizontes, mas se decepciona com mundo que se agiganta a sua frente, e o que se procura não está no mundo físico. O selvagem era conhecedor da poesia shakespeareana e da arte, como esse conhecimento era ignorado no Mundo Novo, ele se rebela e é exilado por livre convencimento, isso o leva ao anistiamento, uma forma de reconhecimento pela sua decisão de anti-liberdae, quando ele percebe que criou uma situação que não desejou, suicidou-se, denunciando o mal que tinha causado ao coletivo. O suicídio do Selvagem, não era condenado na antiga cultura grega, mas Platão foi uma exceção e reprovou o ato. Então, está-se provado pelo suicídio do Selvagem que Huxley não observou a filosofia platônica ao pensar seu Mundo Novo, pois Platão pensaria na liberdade do Selvagem, longe das sombras.

Referências Bibliográficas

MARIAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2004.
MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia, dos pré-socráticos a wittgenste. Rio de Janeiro – RJ. Jorge Zahar Editor, 2000. Pág. 11. HUXLEY, Aldous. Regresso ao Admirável Mundo Novo, Lisboa, (1957) Edição “Livros do Brasil”, s. d.
[1] Charles Robert Darwin (Shrewsbury, 12 de fevereiro de 1809 — Downe, Kent, 19 de abril de 1882), naturalista britânica que alcançou fama ao convencer a comunidade científica da ocorrência da evolução e propor uma teoria para explicar como ela se dá por meio da seleção natural e sexual.
[2] Parmênides (viveu em torno de 500 a.C.), filósofo grego. Precursor do idealismo de Platão e da explicação materialista do universo de Empédocles e Demócrito. Foi o membro mais importante da escola eleática. Defendia que os fenômenos da natureza não têm entidade real. Na opinião de Parmênides, a realidade, a ser verdadeira, somente é encontrada na razão. Sua única obra conservada é Sobre a natureza.

[3] Sócrates (470- 399 a.C.), filósofo grego. Foi o fundador da filosofia moral, ou axiologia. Nascido em Atenas familiarizou-se com a retórica e a dialética dos sofistas, pensadores profissionais que combateu com veemência. Ao contrário dos sofistas, que cobravam para ensinar, Sócrates passou grande parte de sua vida provocando discussões em que ajudava o interlocutor a descobrir as próprias verdades, num método que ficou conhecido como maiêutica. Nunca cobrou por suas aulas e ensinamentos.

[4] Platão (428- 347 a.C.), filósofo grego, um dos pensadores mais criativos e influentes da filosofia ocidental. Discípulo de Sócrates aceitou sua filosofia e sua forma dialética de debate. No ano de 387 a.C. Fundou em Atenas a Academia que Aristóteles freqüentaria como aluno. Seus escritos, em forma de diálogos, podem ser divididos em três etapas de composição. A primeira representa o desejo de divulgar a filosofia e o estilo dialético de Sócrates. A segunda e a terceira compostas pelos diálogos dos períodos intermediário e final de sua vida, refletem sua própria evolução filosófica, expondo já suas próprias idéias.

[5] Aristóteles (384-322 a.C.), filósofo e cientista grego. Estudou em Atenas, na Academia de Platão. Foi tutor de Alexandre III o Grande. Em Atenas, inaugurou o Liceu, que chegou a ser conhecido como escola peripatética. Sua filosofia se baseia na biologia, no empirismo e no formalismo (dedução racional).

[6] MARX, Karl. Economista, filósofo e socialista alemão, nasceu em Trier em 05 de Maio de 1818 e morreu em Londres a 14 de Março de 1883.

[7] MARIAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Pág. 23.
[8] Processo pelo qual eram gerados milhares de gêmeos idênticos.
[9] HUXLEY, Aldous. Regresso ao Admirável Mundo Novo, 1957. Pág. 35.
[10] Processo de condicionamento que leva todos a escutarem máximas didáticas sobre bons costumes durante as horas de sono.
[11] A seleção natural defende que, um animal, por exemplo, que sofre uma variação específica, na qual manifesta mais apta à sobrevivência e também a uma reprodução bem sucedida, todos os seus descendentes vão ter mais chances de sobrevivência do que os descendentes deste animal sem esta variação.